terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Eu não vou deixar

Em meio a um turbilhão de coisas que estão acontecendo, nada para mim é um grande problema, a não ser o fato de eu nunca estar preparada para dizer adeus.
Este ano, se formos pesar, teve muito mais prós do que contras na minha vida. Me mudei de Ribeirão Preto. Passei a morar mais perto do meu irmão. Me casei (e este com certeza foi o dia mais feliz e significante da minha vida). Arranjei o emprego dos meus sonhos (colegas que me dão valor e respeitam o meu trabalho). A ventoinha do carro estragou. Me mudei para um apartamento colorido. Vivi meses de lua de mel. Meu marido arranjou um emprego. Sofri muito com a ausência dele. O pneu do carro furou. Comecei a academia. O nego foi intimado para depor como estelionatário. Passaram um trote na avó dele querendo extorquir dinheiro. Larguei a aula de dança. Caiu dinheiro da carteira. Minha cunhada veio morar com a gente. Quase fui atropelada. Chorei no laboratório por não conseguir autorização da Unimed para fazer um simples exame. Mesmo com a fatura da academia não consegui reaver os 150 que me roubaram. Perdemos o horário da prova de vestibular. Minha vovózinha vai fazer uma cirurgia simples, mas de risco para os 75 anos que comemoramos com tanta alegria em novembro.
E a notícia chegou a mim ontem, meio atravessada, por meio de emails e mensagens no msn, com a sensação de que sempre sou a última a saber e um reboliço imenso, raiva e pressa dentro de mim:“ Ela tem uma obstrução na veia carotida. Esta veia alimenta o cérebro. Fez uma exame um dia desses e descrobriu que estava 92 % obstruida. Hoje de manhã fez um cateterismo para verificar a gravidade do problema. Ela vai ter que fazer uma cirurgia. É um procedimento de risco, mas deve ser feito o quanto antes possível. Caso o coágulo que está obstruindo a carotida desprender, irá para o cerebro e ela pode sofrer um AVC (acidente vascular cerebral). Bem é isso, com certeza as coisas vão se encaminhar para ser atendido a vontade de Deus.”

Nasci quando ela tinha 45 anos e a cabeça coberta de cabelos brancos. A vida não tinha sido muito fácil, mas ela havia se acostumado a ariar as panelas de ferro, encerar o chão vermelho e distribuir panelas pela casa quando chovia. Nesta época já não acompanhava mais o meu avô nas intermináveis viagens de caminhão. Tinha aprendido a lidar com os ciúmes e aquele exagerado amor cedia aos poucos espaço para a confiança. Fazia doces de figo e cuidava de mim enquanto minha mãe estava na Medicina.
Cresci com a referência daquela mulher forte ao meu lado. Algumas vezes até brava. Mas que guardava tudo para si. Compartilhávamos finais de ano com show de Roberto Carlos, programas da Hebe Camargo, e alguns carnavais. Ela me dizia que se fosse mais nova e que se não odiasse o Rio de Janeiro gostaria de desfilar, que achava linda aquelas mulheres sem vergonha de ser feliz.
Nos meus 13 anos a vovó teve um infarte. Lembro que entrei no chuveiro e chorei por mais de meia hora, deixando escorrer toda aquela dor. Ela melhorou, mas foi obrigada a parar de fumar. Parou de ver graça nas coisas. Para evitar o esforço, parou também de dançar forró. E muito contrariada, começou a falar o que vinha a cabeça. Ela às vezes me mandava passar um dia com a outra avó. Você está precisando de alguém que te abraça, melosa igual você. Mas eu sempre preferia ficar ao lado dela. Ao lado da verdade. Porque mesmo em silêncio, assistindo tv até altas horas da madrugada, entre uma soneca e outra, podia sentir o seu amor, aquela amizade cúmplice. Em todos aniversários eu perguntava: - Vó, quantos anos tá fazendo? E a resposta era sempre a mesma: 58. Não porque ela tinha medo de envelhecer, não tinha. Mas porque idade e vaidade nunca foram importante pra ela.
Um dia meu avô se foi. A pessoa que mais a amava e mais a perturbava, tudo ao mesmo tempo. A gente passou a dividir tudo. Os pensamentos, os medos, a cama, as saudades dele, a falta imensa que ele causou nas nossas vidas. Ela deixou de gostar de Roberto Carlos, Hebe e Carnaval. Ela trocou o sofá da TV pelo sofá da sala, e passou a esperar que este silêncio se quebrasse toda vez que seu netinho fosse visitá-la.
Quando a gente aparece é sempre uma alegria. Ela corre para cozinha, descasca para mim uma laranja, enquanto frita o bife de fígado. A gente evita sair porque ela não dorme até todo mundo estar seguro em casa. Sentadas na cozinha, parece que o assunto nunca acaba.
Na última praia ela foi com a gente. Morremos de rir com a água gelada do mar batendo no umbigo. Ela não diz, mas espera ansiosamente pelos bisnetos. Ela gosta mesmo de bastante movimento. Nunca entendeu porque nas rodas de violão só cantávamos músicas tristes. Por ela seríamos cantores de frevo. Por fim, escolheu Honey Baby como a sua favorita. Ela tem os vestidos mais lindos que já vi, mas não gosta muito de fazer visitas. Já tentou várias vezes se mudar para perto da cunhada. Trocar de casa não era um bom negócio, por isso a pintou de rosa. Trocamos os porta-retratos, mas aquele abajur de bailarina, embora nunca acesso, iluminava nossos dias.

Agora só me lembro de ter ligado no domingo para falar parabéns a madrinha. A vovó Diná que atendeu. Estava tudo bem, muito quente, iam para um almoço no tio Naninho. Pedi pra ela não se esquecer de mandar um beijo pro Pedro Vinicius. Disse que sexta cedinho já estaríamos juntas. E que mesmo ela não gostando tanto de Natal, reunir a família é o mais importante.

Em meio a um turbilhão de coisas que estão acontecendo, nada para mim é um grande problema, a não ser o fato de eu nunca estar preparada para dizer adeus.

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