O fantasma da video-locadora

A saudade não tem cara, não tem graça, não tem paz.
A saudade faz, todos os dias, o mesmo caminho para o serviço.
Chega, sorri, catáloga, rebobina, recebe e vai embora.
Tem dias que vai com o mesmo sorriso que chegou.
Tem dias que não consegue sorrir tanto assim.
Um dia, a caminho do serviço, viu o passado passar pela janela. Ela não conseguiu abrir, não conseguiu gritar, e ele passou. (O passado só é bom quando passa. Mas tem que passar só uma vez, e para sempre, passar e ir embora, sem passagem de volta).
Neste dia a saudade chegou cabisbaixa, rebobinou fitas de um romance da ficção, e quando resolveu abrir a gaveta que ficava entre a das cartas que voltaram sem jamais serem lidas e a gaveta onde escondia chocolates para um momento de emergência, para seu espanto, a saudade viu que a gaveta do meio estava vazia. Totalmente.
A saudade parou alguns minutos com os olhos fixos na gaveta, tentando se lembrar o que ela havia guardado lá. Era precioso? Tinha alguma importância? Mas não teve tempo o bastante para se lembrar pois já escutava a campainha a chamar insistente na portaria.
Uma senhora, gorda, que mal conseguia andar, estava ali para lhe devolver uma fita. Uma história entre dois jovens que se amaram tanto, tanto, que não puderam ficar juntos. Ela havia pegado o filme há 2 semanas e não teve tempo de entregar antes.
A saudade deveria cobrar uma multa bem grande pelo atraso. Mas vendo aquela senhora, diante dela, que gostou tanto do filme que tentou vê-lo o máximo que pode para não esquecer nunca mais, percebeu que o nunca mais dessa senhora talvez não demorasse tanto, mas que o dela.
A vida da saudade ainda seria grande, e sempre seria requisitada para resolver esses pequenos problemas do coração. E assim, quando eles surgissem, ela deveria se lembrar o que havia guardado naquela gaveta: um tanto de alma.